segunda-feira, novembro 27, 2006

Travessia

Acabo de descer do ônibus. Está um fim de chuva aqui fora. Só algumas migalhas de gota caindo, mas no chão todas as provas do diluvío. No asfalto, uma correnteza me propõe um desafio, então como chegar a calçada? Eu lembro daquela piada, porque é que a galinha atravessou a rua? Percebo que um tanto mal gosto da minha parte comigo mesma. Esqueço a piada e me deparo com minha sandália que acaba de rebentar. Ótimo, pelo menos já estou pisando na calçada. Adorei a sensação, pé descalço no chão molhado e assim no meio da rua. Me senti num primeiro momento revolucionária, uma desobediente civil que se recusa seguir as convenções sociais e se enquadrar no sistema. Depois de alguns passos de caminhada, de tanto inflar meu ego panfletário, acabei passando para uma análise mais intimista, e fragmentei minha experiência tentando criar um que impressionista. Atravessando outra rua me deparei com uma caroça. Gostoso foi escutar os barulhos do cavalo na rua enlameada. Cavalos me lembram expressionismo. Todo filme ou quadro expressionista tem que ter um cavalo no meio. Por isso às vezes me parece agoniante essas imagens de cavalo. Um pouco mais a frente um bom trecho de grama. E no meio do caminho me aparece uma poça e no meio da poça o caminho e no meio do caminho Drummond, só porque toda minha vida tem de ser entremiada de clichês. Culpa da cultura de massa, eu acho. Dou um salto e ainda encosto na borda da poça. Reflito o quanto de restos estava acumulado naquela água, prefiro me reter a detalhes mais líricos. Depois xingo algumas pobres progenitoras (palavra feia essa pra mãe) pelo pedaço de barro entre uma rua e outra. Nessa altura do campeonato meu pé já está vermelho e cheio de folhas. De repente, enquanto estou no meio do asfalto me aparece um senhor. "Podia chover forte assim era lá no interior do Ceará!". Sorrio. " É mesmo". Ele sorri de volta. Não consegui pensar em mais nada até chegar em casa e ligar a tv.